"E vocês achavam que não nos contando o que faziam， estavam nos protegendo?"qual horário melhor para jogar o jogo do tigre， pergunta Eunice Paiva (Fernanda Torres) a Baby Bocaiúva (Dan Stulbach)， numa cena do festejado "Ainda Estou Aqui"， dirigido por Walter Salles.
Boca， como era chamado Baby Bocaiúva， era amigo de Rubens Paiva e sua família e， após seu desaparecimento， apoia Eunice nas questões práticas da vida. A pergunta anterior de Eunice era sobre a participação de Rubens Paiva na oposição à ditadura. Esse diálogo instiga a reflexão acerca da multiplicidade das resistências femininas， que foram além do confronto direto e explícito.
A pluralidade de experiências das mulheres na ditadura foi omitida， e muitas de suas representações em narrativas oficiais e simbólicas foram restringidas ou ofuscadas por interpretações androcêntricas.
Inês Virgínia Soares é desembargadora no TRF3 e doutora em direito; Lucia Elena Arantes Ferreira Bastos é advogada e doutora em direito; Melina Fachin é advogada e diretora da faculdade de direito da UFPR
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Divulgação
Esse apagamento reflete não apenas o viés de gênero intrínseco às estruturas patriarcais da época， mas também um processo de exclusão histórica que perpetua desigualdades.
Reconhecer as ações —tanto das que resistiram publicamente quanto das que o fizeram no privado— é essencial para compreender a complexidade das lutas por justiça durante períodos de repressão.
Naturalizada e esquecida， a resistência cotidiana das mulheres cujos maridos， namorados， irmãos ou filhos foram perseguidos， torturados， mortos ou desaparecidos ganhou luzes no "Ainda Estou Aqui".
(Sobre)Viver e seguir adiante， lutando por justiça e verdade， foi a orientação tomada por Eunice Paiva e por tantas outras chefes de família.
Filmes que priorizam narrativas femininas resgatam não apenas histórias individuais， mas também revelam como o gênero moldou a resistência， a repressão e os processos de sobrevivência durante o regime autoritário. Essa perspectiva permite uma abordagem interseccional das injustiças históricas sofridas pelas mulheres.
O cinema é uma ferramenta para o reconhecimento e promoção da responsabilização pelo passado; e que pode ser mobilizado como um mecanismo de justiça transformadora para as mulheres， principalmente， porque o filme pode ter a capacidade de cruzar as linhas da desigualdade tão fortemente incutidas na história brasileira.
No Brasil， os algozes de Rubens Paiva e de torturados， desaparecidos e mortos na ditadura não foram punidos devido à Lei de Anistia. Filmes como "Ainda Estou Aqui" e outros que lidam com temática semelhante - Que Bom Te Ver Viva (1989); Zuzu Angel (2006); Hoje (2011); Em Busca de Iara (2013); e Torre das Donzelas (2018) - surgem como reparação simbólica， apesar de não substituírem a justiça.
O impacto dessas obras transcende o mero registro documental， oferecendo a oportunidade de repensar o papel das mulheres como agentes de transformação política， além de desafiar a cultura de masculinidade tóxica que permeou o período da ditadura， evidenciando como estruturas patriarcais sustentaram e normalizaram práticas de violência.
Ao propor novas formas de interpretar e narrar o passado， Ainda Estou Aqui tem o potencial de redefinir os marcos de memória coletiva e criar novos espaços para a justiça de gênero.
Sorrir continuou a ser uma possibilidade para Eunice e seus filhos. Lembrar e nunca esquecer precisa ser a nossa orientação enquanto sociedade.
O editor， Michael França， pede para que cada participante do espaço "Políticas e Justiça" da Folha de S. Paulo sugira uma música aos leitores. Nesse texto， a escolhida por Inês Soares， Lucia Bastos e Melina Fachin foi "Baby" de Caetano Veloso na versão interpretada pelos Mutantes.
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